A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E O TRÁFICO DE PESSOAS

Ao analisar em especifico o papel do Brasil dentro desse contexto, pode perceber que sempre houve nesse território um trabalho visando controlar tal pratica, isto é, o tráfico de pessoas, mas sem dúvida muito mitigada, contudo esse movimento só vai se fortalecer nas últimas décadas[1], ou seja, quando o Estado brasileiro resolve enfrentar formalmente a existência de trabalho escravo[2] contemporâneo no país e em consequência disso acabou instituindo mecanismos e medidas que se viabiliza o aprimoramento de práticas que caminhassem no formato que viabilizasse combater tal crime. (ROCHA, 2013)

Nesse ponto se faz necessário fazer um esclarecimento, isto é, uma alerta sobre o trabalho escravo contemporâneo daqueles praticados no período imperial ou colonial e nesse sentido a UNODC[3] (2014, p. 23) leciona que:

O trabalho escravo adotado oficialmente no Brasil por mais de três séculos, durante os períodos colonial e imperial, também estava relacionado a um lucrativo tráfico de pessoas, por meio do deslocamento forçado de uma grande quantidade de mulheres e homens negros de países africanos. Infelizmente, essa forma histórica de escravidão e o trabalho escravo contemporâneo têm alguns elementos em comum, como condições degradantes de trabalho, ameaças, violência psicológica, coerção física e até assassinatos. No entanto, há muitas diferenças. Atualmente não são correntes e grilhões que prendem as pessoas ao trabalho. A privação de liberdade se dá também por outros meios, como dívidas ilegais, retenção de documentos, isolamento geográfico e retenção de salários. Antes, as pessoas escravizadas eram compradas e vendidas, de maneira legal, como se fossem mercadorias, o custo de aquisição de mão de obra era alto, e a propriedade era para a vida toda. Hoje esse custo é muito baixo, gasta-se apenas com o transporte, cobrado posteriormente dos trabalhadores, e os períodos de trabalho são mais curtos. A mão de obra é descartável; terminado o serviço, pode ser dispensada. (Grifos nossos)

Em outro ponto, neste posicionamento, verifica-se que embora o Brasil, apesar de ter abolido a escravidão formalmente, essa não se findou. Por outro lado, acaba ainda se verificando presente a escravidão na Era moderna nas suas mais diversas formas e definições. (FILGUEIRA,2014)

Nessa visão, como um reforço daquilo que já foi examinado aqui, Souza (2016, p. 144), leciona que:

A escravidão é uma prática violatória de direitos humanos presente em todas as épocas, desde as nações bárbaras até as civilizadas. Alguns imaginam que a escravidão é algo próprio da antiguidade e, portanto, uma realidade superada com a cultura dos direitos humanos e a abolição da escravatura, da servidão, haja vista a ascensão dos distintos sistemas jurídicos dos mais variados países, em obediência ao ordenamento jurídico internacional. A comunidade internacional adotou tratados que foram elaborados sob os auspícios da Sociedade das Nações (SDN), isto é, a Convenção sobre a Escravatura (1926) e da Organização das Nações Unidas (ONU), ou seja, a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura (1956). Embora todos os países tenham abolido a escravidão, tornando-a uma prática ilegal, esta persiste na atualidade sob uma nova “roupagem”, ou seja, se expressa por meio das formas contemporâneas de escravidão. Nesse sentido, levando-se em consideração que os dados sobre essas práticas sejam subnotificados, as cifras atuais são assustadoras. Em todo o mundo, 35,8 milhões de pessoas são vítimas da escravidão moderna e muitos dos produtos que são consumidos foram por elas produzidos – ao menos 122 produtos oriundos de 58 países de todo o mundo são produto da escravidão moderna. (Grifos nossos)

Para Melo (2015, p 74-75) a pauta sobre o tráfico de pessoas com a finalidade para o trabalho escravo se consolidou no Brasil por conta de que:

Dentro do Estado brasileiro, a força da pauta do TSH não parece derivar da sociedade, das vítimas do fenômeno, (…). Ao contrário, parece suplantar suas vozes. Como já mencionamos, a agenda do tráfico, (…) no país, engoliu agendas que aqui já se desenvolviam anteriormente. E não são incomuns manifestações de atores ligados às pautas suplantadas de que perderam-se espaços de articulação política à medida que a máquina do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas ganhou projeção.

Desta forma, demonstra Scandola (2014, p. 149) que:

A estruturação da política de enfrentamento ao tráfico de pessoas não colocou exatamente os/as cidadãos/ãs traficados/as como parte do processo, como sujeitos que têm o que falar de suas vidas e as possibilidades de sentirem-se partícipes da política pública para além de usuários/as, como geralmente os/as denominamos.

Contudo, não se pode negar que o combate ao crime do tráfico de pessoas nas suas mais diversas formas, apesar de não ter sido extirpado do Estado-Nação brasileiro veio ao longo do tempo, primordialmente, nas últimas décadas, impulsionados pelo Protocolo de Palermo e de seus protocolos adicionais, sendo cada vez mais mitigado – mesmo que não receba o tratamento devido – verifica-se um projeto discursivo constituído por uma demanda pública visando à proteção e garantia que numa frente visa impedir a consagração do crime e em outra a proteção dos direitos humanitários. (SILVA, 2017)

Desta maneira, Patruni (2018, p. 91), ao valorar o trabalho do Brasil nas ultimas décadas em relação às propostas de enfretamento quanto ao tema enxerga que:

O Brasil intensificou no ano 2000 de forma mais abrangente seu projeto de combate a esse tipo de crime ao efetivar uma cooperação técnica internacional assinada entre a Secretaria Nacional de Justiça e o UNODC. Assim como ao longo dos anos desenvolveu pesquisas importantíssimas para seu estudo como a PRESTRAF, a qual revelou diversos aspectos do tráfico de pessoas no país, entre eles a identificação de rotas, as questões de gênero e raça que o permeiam, o papel da exclusão econômica social e condições de vulnerabilidade, que tornas certos indivíduos presas fáceis das redes de tráfico e a pesquisa ENAFRON especificamente sobre fronteiras.

Posiciona ainda que:

O combate efetivo ao tráfico de pessoas só será possível através de ações conjuntas. Essa conjunção deve se estender entre o setor público e setores privados, assim como entre Estados nacionais. Diversos são os caminhos adotados para a erradicação do tráfico de pessoas. (PATRUNI, 2018, P. 81)

Demonstra, por esse olhar Melo (2015, p. 143) que:

A agenda do tráfico de pessoas, a despeito da polêmica discussão relativa à sua definição e à prevalência de medidas repressivas ou de medidas de proteção às vítimas, avançou normativamente (no cenário internacional como no Brasil) sobrepujando os questionamentos quanto à restritividade que começava a dominar as políticas migratórias pelo mundo, assim como o impacto que essas barreiras à imigração têm sobre o tráfico de pessoas e o contrabando de imigrantes. Entendemos que o predomínio do debate em volta da categoria do tráfico contribui para o aumento da restrição à mobilidade das pessoas, uma vez que se aproxima de dinâmicas de criminalização da migração. É necessário atentarmos para o quadro maior das políticas migratórias, se pretendemos impedir que, sob a justificativa de combate ao crime, consagrem-se normas e medidas com outro objetivo, o de restringir ou impedir a migração. O foco no tráfico de pessoas favorece, ainda, uma responsabilização apenas dos países de origem e promove uma séria despolitização do debate que envolve a questão do trabalho, sua divisão e exploração. Esconde também relações históricas de colonialidade e questões estruturais da sociedade internacional, sobretudo em relação à soberania.

Em outro ponto, afirma Souza (2016, p. 122):

O Brasil conta com a Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e tem desenvolvido variadas ações de prevenção e assistência às vítimas, no que tem logrado êxito, em parte, vez que no caso do tráfico de pessoas para o trabalho escravo ou suas situações análogas. Com o novo marco legal de 2016, acredita-se que essa Rede restará mais fortalecida, na medida em que todos os órgãos que são atuantes nesse problema, a exemplo do MPT, trabalharão em sintonia com os sistemas de justiça e as polícias, que passarão a compreender o TdP em sinergia com outras finalidades de exploração e, não somente a exploração sexual, como ocorria anteriormente.

Entretanto, não se pode negar que – apesar de toda essa estrutura de combate ao TP nas últimas décadas no país – há ainda muitas práticas criminosas que torturam e submetem as pessoas a trabalhos forçados, no território brasileiro, assim, essas pessoas operam de modo silencioso, nas sombras da lei, já que tal pratica constitui crime fixado no Código Penal no artigo 149, que carrega em seu bojo quatro categorias diferentes para caracterizar o trabalho análogo ao de escravo[4], nesse sentido Cunha (2016, p. 214) informa que as seguintes:

 (…) i) condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), ii) jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social), iii) trabalho forçado[5] (que mantém a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e iv) servidão por dívida (que consiste em fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a este). (Grifos nossos)

Dentro dessa forma Nabuco (2011, p. 83) prescreve que:

(…) a escravidão não é um contrato de locação de serviços que imponha ao que se obrigou certo número de deveres definido para com o locatário. É a posse, o domínio, o sequestro de um homem corpo, inteligência, forças, movimentos, atividades – e só acaba com a morte. Como se há de definir juridicamente o que o senhor pode sobre o escravo, ou que este não pode contra o senhor? Em regra o senhor pode tudo. Se quiser ter o escravo fechado perpetuamente dentro de casa, pode fazê-lo; se, tendo ele mulher e filhos, quiser que eles não se vejam e não se falem, se quiser mandar que o filho açoite a mãe, apropriar-se da filha para fins imorais, pode fazê-lo. (Grifos nossos)

Assim, nitidamente pode se concluir que:

Os trabalhadores cooptados para o trabalho escravo sofrem sobremaneira com a ausência de renda suficiente para suprir necessidades individuais familiares. A falta de acesso à educação é outra importante privação, pois ceifa suas oportunidades de trabalho gerando a baixa escolaridade e a falta de especialização. A pobreza ligada à renda e também ao acesso recursos públicos contribui para a vulnerabilidade de milhares de brasileiros, que, para garantir minimamente sua sobrevivência, deixam-se enganar por promessas fraudulentas e aceitam qualquer condição de trabalho. (SILVA, 2017 apud COSTA, 2010, p. 112)

Claramente, a partir de uma reflexão dos estudos exposto anteriormente é possível findar que o principal fator que constrói e desenvolve o tráfico de pessoas no território brasileiro, para fins da exploração laboral está intrinsicamente relacionado com a pobreza que afeta grande parte dos integrantes dessa sociedade, assim muitas pessoas acabam, na tentativa de conceber um futuro mais digno, acreditando em propostas de empregos falsas professadas pelos aliciadores e desta forma elas findam em vítimas, já que serão postas dentro do circuito do tráfico de pessoas e quando estiverem longe de suas residências serão forçadas e submetidas a condições de trabalho muito precária e exaustiva, para dar ganho econômico ao aliciador. (SILVA, 2017)

Porquanto, para o autor (2017, p. 27) há ainda outras coisas que contribuem para desencadear essa ilicitude como: “o desconhecimento das leis e dos direitos trabalhistas pela população, bem como a impunidade dos praticantes desse crime”. Porquanto, acredita-se que essa falta de “educação” por parte do homem-laboral é o que contribui para a cristalização do tráfico delas.

Desta forma, entende-se que não:

(…) obstante a nota característica seja a liberdade, não se quer afirmar que somente o princípio da liberdade é ferido. O da legalidade também é, pois a manutenção forçada do trabalho opera contra normas legais expressas. O da igualdade da mesma forma, pois é dado tratamento diverso do concedido a outras pessoas. Por fim, o da dignidade da pessoa humana, de onde derivam todos os demais princípios, pois, ao se retirar o direito de escolha do trabalhador, e às vezes dar a ele o mesmo tratamento que se dá a outros seres e objetos, atenta-se contra sua dignidade, tanto no plano moral como no plano material (SILVA, 2017 apud FILHO, 2004, p. 75).

Por outro lado, também não se pode esquecer que não é uma tarefa fácil a conceituação daquilo que seja um trabalho que seja degradante, uma vez que esse fica a mercê de deduções interpretativa, ao contrário do que se ver como trabalho forçado já que esse é tipificado no ordenamento pátrio, assim para sua caracterização é necessário somente a privação da liberdade do agente, assim aquele passa a ser teoricamente relativo e vai depender do caso em concreto para ser valorado e conceituado. (CARDOSO, 2014)

[1] É latente destacar que isso ocorre principalmente com a ratificação da Convenção de Palermo e seus protocolos adicionais o que acarretou em alterações ao Código Penal em 2005 e posteriormente em 2009, de modo que fosse possível se modernizar frente aos problemas atuais e construir uma legislação que atenda as necessidades da sociedade. Desta forma, “em 2006, criou-se a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto nº 5.948/2006, que adotou os termos do Protocolo de Palermo, não se atendo exclusivamente ao tráfico para fim de exploração sexual prevista no Código Penal” (SANTOS, 2012, P. 55).

[2] Para Santos, (2012, p. 18), no Brasil, tal preocupação gerou não só mudanças na legislação penal mais a criação de uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. (Grifos nossos)

[3] United Nations Office on Drugs and Crime, que em uma tradução livre significa: Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.

[4] Vale lembrar, nesse campo, que a obrigação de garantir os direitos trabalhistas só foi editada em 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural, com previsão de normas de proteção a essa categoria de obreiros, vinte anos depois da Consolidação das Leis do Trabalho. A Lei 5.889/738 substituiu o Estatuto, estendendo os direitos dos trabalhadores urbanos aos trabalhadores rurais com algumas peculiaridades, uma vez que a igualdade jurídica só veio com a Constituição Federal de 1988.  Na esfera internacional, o Brasil ratificou, décadas depois de sua promulgação, as Convenções 299, e 10510, da Organização Internacional do Trabalho. A primeira – Convenção sobre Trabalho Forçado – trata sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas. A segunda – Convenção sobre Abolição do Trabalho Forçado – diz respeito à proibição do uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves; como medida de discriminação, lecionam Nogueira, Novaes, Bignami e Plassat (sem ano, p. 5).

[5] A Convenção da OIT sobre Trabalho Forçado (nº 29), de 1930, define trabalho forçado como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual ela não tiver se oferecido espontaneamente”. Essa definição ampla foi marcada, desde o início do século passado, pela necessidade de abarcar o trabalho forçado como um fenômeno mundial, que não se restringe a determinadas regiões, países, tipos de economia, setores econômicos ou modalidades de exploração, descrevem Vasconcelos e Bolzon (2008, p. 69).

 

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